Maquiavel na escola


Devido ás dúvidas dos leitores, achei interessante trocar em miúdos a forma como ocorre a expulsão de um aluno da escola. É algo maquiavélico, pois a expulsão em si é proibida: a Constituição Federal garante acesso ao ensino para todas as crianças e adolescentes e o ECA reforça essa garantia, determinando que em nenhuma situação o aluno pode ser impedido de acessar a sala de aula. A expulsão precisa ser portanto muito bem tramada e articulada. Ainda me lembro do menino garrafeiro que passava aqui em casa e que entrou na 1ª série junto com meu filho. Depois de uns meses perguntei como estava indo na escola e ele respondeu que havia sido transferido para o curso noturno - com nove anos de idade! Fui reclamar com a diretora e ela disse que a medida havia sido tomada "de comum acordo com a família", pois o estudo estava atrapalhando o trabalho do garoto... Logo em seguida, o menino abandonou a escola.

Mas o melhor exemplo de uma expulsão maquiavélica é o texto da Glória que me permito reproduzir abaixo. O garoto desse relato é muito parecido com o protagonista do meu livro "O estuprador" (link no alto da página - leia se tiver coragem), baseado em fatos reais tão pungentes que tive que inventar um "final feliz" para a história.

O que aconteceu com o aluno L.W., de 12 anos, na Escola Municipal Osmar Lacerda França, em Leopoldina, MG, é um exemplo típico de como a escola pública expulsa nossas crianças pobres. É da maneira mais sórdida possível: legalmente. L.W. é uma criança lenta e, devido ao seu jeito de ser, anda também devagar. Devido a isso e outros fatores que acontecem com as crianças pobres (como não ter um despertador em casa, sair de casa sem café da manhã, não ter um adulto em casa pois saem para trabalhar) ele chegava atrasado na escola. A diretora não deixava entrar, mandava embora para a rua. Entrei em contato com a diretora e expus várias razões pelas quais ela não podia fazer isso com o aluno: 1- Se ela não deixa o menino entrar, ele vai para a rua. 2- A escola não pertence a ela, diretora, e sim ao povo (é o povo que paga o salário dela e das professoras), portanto ela não pode impedir o menino de entrar na casa dele. Perguntei se ela deixava o filho dela na rua se ele chegasse atrasado em casa, ela disse que não. 3- Ela, como pessoa formada para a profissão e atuando numa área de pobreza, teria de ter consciência das dificuldades inerentes à situação dessas crianças, que não têm as facilidades que nossos filhos têm. 4- Em vez de "mandar o menino embora" ela deveria conversar e orientar a criança, procurar saber da sua vida, as razões pelas quais ela vem chegando atrasada e atuar para superar o "problema". 5- E por fim que o problema maior não é o aluno chegar atrasado, mas sim ele ir embora da escola.

Com a empáfia característica das pessoas que exercem qualquer cargo público em nosso país, ela respondeu que " essa era a ORDEM da escola e que dava, sim, ordem para o porteiro fazer voltar do portão quem chegasse atrasado e que continuaria a fazê-lo, pois estava implantando um "projeto de qualidade" na escola. Tentei argumentar de todas as formas, mas sem êxito. Conhecem aquele ditado "Só poste e mula é que não mudam de posição"? Pois é, esqueceram de acrescentar diretor de escola. Por fim, achando que poderia ser a única chance de salvar mais um menino da rua, eu disse que iria ao Promotor de Justiça se ela continuasse a mandá-lo embora da escola. E fiquei ingenuamente tranquila achando que pelo menos ela respeitaria a autoridade de um Promotor Público. Ledo engano! A diretora tratou de legalizar a expulsão. Daí a uns dias chamou a mãe para assinar dois "documentos", um de que a mãe era comunicada de que o aluno chegava atrasado (a mãe assinando, torna a escola isenta do crime) e o outro "documento" comunicando a entrega do menino ao Conselho Tutelar. E assim, como Pilatos, ela lava as mãos. Não é genial? Não faria Maquiavel corar de vergonha?

Caro Leopoldinense, todas as vezes que vir uma criança nas ruas de Leopoldina, ou mesmo um jovem em nossas prisões, saiba que por trás deles tem uma atitude maquiavélica de nossa escola pública, que de pública só tem o nome.

Comentários

Vera Vaz disse…
É, Giulia, final feliz só na sua imginação mesmo...
Tenho visto muitos tipos como este que a escola não absorve morrerem com uma bala disparada por um policial em nome da lei...
Tenho visto e de pertinho e com o coração sangrando.
Não são personagens de um conto não, são meus vizinhos, que brincaram com meus filhos e jogaram futebol na minha chácara... (aqui no Paraná, viu Leandro)
Quando a escola vai se estruturar para receber e EDUCAR esses meninos?
Quando tudo isso vai mudar?
Vera Vaz
Anônimo disse…
Giulia, ainda tem a continuidade da história so LW... Por fim, quando vi que elas iriam perseguir tanto o menino que não adiantaria insistir, disse à mãe que aceitasse a transferência e o levasse para uma outra escola. A mãe falou que iria aceitar, sim, mas que não tentaria mais, que não levaria para outra escola. Ensisti com ela e mandei a nossa monitora matriculá-lo na outra escola. Lá chegando, a prof. que atendeu disse a ela: "É aquele menino que chegava atrasado na outra escola?, aqui também não queremos, se atrasar um dia, não entra." Aí nós pedimos ajuda de um advogado, a notícia já tinha saído no jornal, elas ficaram com receio e, a contra gosto, deixaram ele ficar. Resultado: ele está razoavelmmente bem, sendo obrigadas a aceitá-lo e no conviver com ele, acabaram vendo como era um bom menino, tranquilo, amigável e deu-se, milagrosamente, um final feliz. Mas veja o que foi preciso fazer para manter "um" menino na escola. Como fazer isso com todos os "expulsos"?
Giulia disse…
Então, como eu sempre digo, precisamos de mais "Glórias" no Brasil. Já contei a historinha da Maria Alice, a diretora da escola dos meus filhos que disse: "Agora ainda não posso lutar com vocês pais, porque arrisco perder a minha aposentadoria, mas quando estiver aposentada, aí si, contem comigo!". Mas a Maria Alice aposentou-se e foi cuidar da vidinha dela... Você, Glória, professora aposentada, continua batalhando pelos outros e não daquela forma ridícula como eu vi na Comissão de Direitos Humanos da OAB, fazendo reunião e comendo sanduichinhos. O Brasil precisa acordar para esta realidade: existem milhares de pessoas aposentadas de classe média, advogados, professores,publicitários, jornalistas etc., esperando "a morte", quando poderiam dedicar um pouco do seu tempo em favor de pessoas mais humildes que não receberam a educação necessária para defender seus direitos. Se apenas dez por cento dessas pessoas dedicassem um décimo de seu tempo para reparar o estrago, o Brasil mudaria em poucos anos. Não estou absolutamente falando de assistencialismo nem de participar de ONGs, algumas delas, aliás, bastante suespeitas. Bastaria que essas pessoas perguntassem para suas faxineiras (não vou falar aqui de empregada doméstica para não criar tumulto, hehe) como vai a escola de seus filhos ou sobrinhos, que os problemas iriam aparecer e poderiam ser encaminhados para a solução. Dá trabalho, certamente, e na maioria dos casos a corporação ainda vence a luta, mas uma única vitória já é um exemplo para todo o Brasil.