Câmara discreta






Está em cartaz em Sampa o filme Pro dia nascer feliz, de João Jardim, o mesmo de Janela da alma. O documentário retrata cenas de adolescentes dentro de escolas públicas e particulares, em três Estados do Brasil: Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. De forma sensível e sem querer tirar conclusões, o filme dá um amplo panorama da falta de rumo do ensino no País.

Em Pernambuco, numa das cidades mais pobres do Brasil, descobrimos uma jovem poetisa cujo talento é ignorado pelos professores: eles simplesmente acreditam que ela copie os poemas de livros. Na época das filmagens (2004-2005) não havia ensino médio no município e os alunos eram levados de ônibus para outra cidade. O ônibus vivia quebrado, portanto as aulas eram minguadas.

Em escolas públicas do Rio e do Estado de São Paulo os alunos mostram-se desanimados com as aulas vagas: a cada dia, uma ou duas. As aulas também nada parecem lhes acrescentar. Uma diretora de escola começa um discurso interessante dizendo que o ensino precisa ser revisto, pois o aluno encontra seus interesses fora da escola, mas em seguida muda a linha de raciocínio, alegando que os professores estão sim preparados, mas sentem-se desvalorizados... A lenga-lenga de sempre. Impagável a cena onde um grupo de professoras completamente afogadas na maionese faz a “avaliação” de um aluno dentro do Conselho de Classe. Reprova ou não reprova?...

Discute-se a questão da recuperação de aulas, vista como algo completamente inútil. Se o aluno costuma ter uma média de 25% a 30% de aulas vagas durante o ano, recuperar o quê? Pior ainda a situação do aluno com dificuldades de aprendizagem, pois a recuperação continuada ainda é um projeto que não saiu do papel em 99% das escolas públicas do País.

Outras cenas mostram professores descontrolados, alguns confusos ou deprimidos. Nenhuma sala de aula apresenta algum grupo envolvido numa atividade interessante ou envolvente. A não ser a confecção de um fanzine dentro de uma classe, uma atividade que exige dos alunos interesse e participação pessoal. Uma das alunas descobre seu potencial literário, que porém se perde no final do curso, pois ela não tem acesso à universidade e acaba se empregando dentro de uma fábrica como dobradora de calças.

O aspecto material das escolas apresentadas chega a ser deprimente: pátio cheio de entulho, carteiras quebradas, banheiros indecentes e privadas esvaziadas com baldes. O ponto alto é o pulo de um rato dentro de uma sala de aula.

No outro extremo, garotos de classe média alta estão às voltas com enormes exigências de rendimento escolar, ditadas por um sistema extremamente rígido, que não leva minimamente em conta sua condição de adolescentes. Nas palavras de uma das alunas, em dias de provas os banheiros ficam lotados de garotas às lágrimas. Assim, os problemas existenciais típicos da idade, colocados por uma das meninas entrevistadas, acabam sendo esmagados pela exigência de passar de ano a qualquer preço, dentro de um sistema elitista que também muitas vezes leva à exclusão. Impagável a cena da professora dando uma aula pasteurizada sobre “O cortiço” e o naturalismo, impingindo aos alunos conceitos abstratos de horizontalidade e verticalidade para descrever a questão social, em vez de convidá-los a refletir sobre o assunto. Por outro lado, muito interessante a conversa de um grupo de alunos sobre sua própria condição social, percebendo o Brasil nitidamente dividido em dois mundos e sentindo-se, eles próprios, protegidos dentro de uma “bolha”.

Enfim, um filme que vale a pena ser visto e comentado, levando-se porém em conta que não se trata de uma “câmara indiscreta”. Todos que foram filmados sabiam que o estavam sendo, portanto pode-se imaginar que a realidade é muito mais crítica do que foi mostrado. Nenhum aluno, por exemplo, sentiu-se à vontade para contar detalhes sobre a forma como é tratado por professores e diretores dentro da escola, a não ser um garoto fanfarrão.

De tudo o que vi nesse documentário, o que mais me entristeceu foi a noção da grande perda de talentos que a nossa escola produz. Garotas e garotos brasileiros, pobres ou ricos, mas cheios de vida, inteligência e potencialidades, são excluídos e podados em seus anseios, por uma escola que pouco se importa com eles como seres humanos, nem lhes fornece as condições para desenvolver suas aptidões. Quem perde com isso é o Brasil, somos todos nós.

Comentários

Anônimo disse…
Excelente análise, Giulia! É como se eu tivesse assistido ao documentário... Aliás, é um dos meus projetos: fazer um documentário sobre a escola, vamos?
Ricardo Rayol disse…
O grande exemplo são os modelos pedagógicos impegidos pelos grupos Objetivo, um do Paraná que não me recordo o nome e aqui na ilha o Energia. Do berçário ao MBA. Fábricas de automatos.
Luisete disse…
Excelente análise, muito comovente, dá tristeza quando, pelo seu relato, entramos nessa realidade. Não há dúvidas de que desperdiçamos grandes talentos e que mesmo os que têm acesso ao ansino pago estão no prejuizo. Como disse o Ricardo, estão formando autômatos e, como mostra o seu relato, estão formando criaturas estressadas e competitivas.

Como educar uma criança em um ambiente sujo, decadente, como transmitir valores como ordem e respeito? O ambiente colorido, limpo, organizado, infundem bom ânimo, otimismo, alegria ... motivam aluno e professor.

E, como corrigir, no futuro, as deformações trazidas pelo descaso com a educação?
Clau disse…
Giulia, tenho uma amiga professora de música da Faetec RJ. As condições da escola são deploráveis - o calor insuportável, a comida horrível e o centro cultural esquecido, sem salas para os professores ou alunos - como se a música não fosse importante no desenvolvimento das crianças.
Telhas de amianto cobrem as salas, os bebedouros não funcionam, banheiros destruídos, as paredes da cozinha mofadas e o teto cheio de cocô e ninhos de pombo. A escola já foi referência no ensino proficionalizante e é uma das poucas em Niterói que possui ensino musical.

Inúmeras denúncias foram feitas, solicitações d reformas, melhorias, condições mínimas de trabalho para professores e alunos sob um calor de até 45 grau (calor de 40 + telha de amianto = forno) - e nada acontece.

Alunos talentosos perdem-se por não terem condições de continuar o estudo da música. Isso sem falar da escola em si, falo apenas do centro cultural.

Os professores não têm uma sala de descanso, de estudo; não têm onde guardar seus pertences, não têm acesso a um computador e as salas de música não têm isolamento acústico -vc dá aula de piano ouvindo a flauta da sala ao lado.

Um retrato deprimente da educação e d uma Fundação que, teoricamente, não deveria ter estes problemas.

Portanto, não me surpreende a situação que você descreve e que é retratada no filme.

Vou assisti-lo e recomendá-lo.

Abraços, Clau