Querido Jô...


Acho que o Jô chegou no fim da linha. Tudo bem ele continuar fazendo suas piadinhas, sempre há quem goste. Mas como entrevistador de políticos e homens públicos que precisam prestar contas à sociedade, pode muito bem jogar a toalha.

Acabo de assistir, pasma, à entrevista com o ministro da educação, Fernando Haddad: perguntas primárias respondidas da mesma forma. Os “pontos altos” da entrevista foram a progressão continuada e... claro, o salário do professor. Sobre a progressão continuada, o Jô deixou claro que não sabe o que é. Falando mais do que a boca e sem perguntar ao ministro, desfilou toda uma série de lembranças saudosistas de sua época de estudante, em que havia os exames de admissão, os exames anuais e todo tipo de “avaliação” dos alunos...
É impressionante como as pessoas confundem avaliação com aprendizado. A avaliação é apenas um instrumento para medir o aprendizado, ela não garante absolutamente que o aluno aprenda. Muito menos se ela for apenas anual!

Para que o aluno aprenda, é preciso que alguém ensine. Todo dia. Com continuidade. Com competência. Dentro de um projeto pedagógico. E o aprendizado não pode ser medido somente uma vez por ano. O professor que avalia seu aluno apenas anualmente mostra que não está minimamente interessado nele. E o professor que chama a progressão continuada de “empurração automática” deixa claro que não avalia seu aluno nem mesmo uma vez por ano! Ele mostra que não está nem aí, que ele pode “empurrar automaticamente” seu aluno anos a fio, pois esse problema não é dele, professor, é apenas do aluno. Esse professor que fala em “empurração automática” se incomoda apenas com a possível cobrança de sua incompetência. Por esse motivo, ele só deseja poder voltar a reprovar os alunos, para expulsar uma leva deles a cada ano e mostrar como é “bom avaliador”.

A colocação do ministro a respeito do assunto foi água com açúcar, esclarecendo nada com coisa nenhuma. Ele falou da “indústria da repetência”, um belo tema que daria pano pra manga, mas limitou-se a usar a expressão, sem explicar esse fenômeno sórdido que incha e asfixia a rede pública de ensino, permite a manutenção dos maus profissionais e a exclusão de alunos da escola. O ministro também não soube explicar como funciona a progressão continuada. Prestem atenção, Jô e ministro:

A progressão CONTINUADA é um sistema que se apóia na avaliação e na recuperação do aluno. A avaliação precisa ser diária, semanal ou mensal, enfim, ela precisa ser CONTINUADA. Se a avaliação mostrar que o aluno não aprendeu, o professor precisa fazer a recuperação. E essa recuperação não pode ser deixada para o ano seguinte, como querem os defensores da repetência. Para ser eficiente, a recuperação precisa ser CONTINUADA, ou seja, paralela. Entendeu, sr. ministro? O professor preparado e interessado sabe avaliar seu aluno e faz sua recuperação contínua, não o deixa ao deus dará para livrar-se dele no final do ano. A repetência interessa apenas ao mau professor, ao ignorante, incompetente ou relapso, àquele que falta a todas as aulas que puder, emenda todos os feriados e, quando não puder mais, pede para o diretor assinar o livro de presença, alegando “estresse”.

Trocando em miúdos, lá vai uma equaçãozinha muito simples:

PROGRESSÃO CONTINUADA = AVALIAÇÃO CONTÍNUA + RECUPERAÇÃO CONTÍNUA
(TRABALHO PARA O PROFESSOR).

REPETÊNCIA = ABANDONO DO ALUNO NO INÍCIO + EXPULSÃO NO FINAL DO ANO
(FOLGA PARA O PROFESSOR).

Assim, o professor do ano corrente livra-se do aluno e o do próximo ano lava suas mãos, porque acha que a responsabilidade não é dele. Simples assim!

O outro assunto “chave” do programa, o salário do professor, foi tratado da forma mais patética possível. Algumas professorinhas no auditório perguntaram com voz fininha e muitos “né!” como é possível dar aula com salários tão baixos... Aliás o Jô já havia dito que sem salários “decentes” não há estímulo, mas depois se contradisse, ao mencionar professores para os quais o salário era o de menos... Jô, vá se preparando pra jogar a toalha, Jô...
Já o ministro se saiu “muito bem” nessa questão, respondendo o que todo mundo queria ouvir: está sendo estudado um piso salarial especial para o profissional da educação, além de um plano de carreira. Sim, porque o professor precisa ser prestigiado quanto ao seu tempo de magistério, quanto à sua qualificação e blá-blá-blá. Nenhuma palavra sobre cobrança ou avaliação do professor! Ele poderá dar aula ou não, chegar atrasado ou não, conhecer sua matéria ou não, avaliar o aluno ou largá-lo ao deus dará até o final do ano. Vai receber seu salário do mesmo jeito.
Muito bem, ministro! Quanto vale o trabalho de um professor que expulsa aluno?... Já incluiu esse item no plano de carreira?

A única pergunta inteligente do programa foi feita por uma mulher do auditório que informou ter tido muitos problemas em seu tempo de escola por ser dislexa e perguntou se o ministério tinha algum programa para auxiliar o aluno com dificuldades, já que em 99% das escolas o ensino continua sendo “dado” pedindo para o aluno copiar matéria da lousa. O ministro enveredou por caminhos tortuosos falando de programas nebulosos para alunos especiais, inclusive projetos com braile, mas não respondeu o que a mulher realmente queria saber: o ensino tradicional vai continuar com giz e lousa? Sim, porque a dislexia não é uma dificuldade de “alunos especiais”, ela é um dos graves problemas do ensino no Brasil, principalmente porque não há estudos sérios nem práticas universalizadas. Muitos alunos com dificuldades de aprendizagem, alunos “bagunceiros” ou “difíceis” podem ter dislexia. E são tratados como “burros”.
Não somente para os dislexos, mas para todos os alunos deste novo milênio, em que a comunicação é muito mais visual do que verbal, o ensino através de lousa e giz de cera está totalmente superado. Mas o sr. ministro passou bem pela tangente deste assunto e mesmo assim recebeu aplausos do auditório e parabéns do Jô...

Jô, Jô, meu querido...

Comentários

Anônimo disse…
Giulia,

Não vi o programa, faz tempo que não consigo engulir o Jô, mas certamente vc fez uma análise brilhante duma entrevista que só serviu para perpetuar os mitos do ensino brasileiro propagados pela mídia e pelas autoridades incompetentes e desinteressados em melhorar qualquer coisa. Envie seu post maravilhoso para assessoria do Jô, talvez aprende algo.
Giulia disse…
Ah, Caroline, o Jô é tão intocável quanto o professor!... rsrs
Vera Vaz disse…
Se salário fosse solução pra falta de vergonha o congresso deveria ser maravilhoso! Olha quanto os caras ganham e o que fazem!!!!!....
Chega dessa mistificação que não são bons professores por que ganham pouco! Isso é uma grande balela!
Anônimo disse…
Grande, Giulia, adorei a análise. Também como a Caroline, há temos que não aguento o Jô, mas senti ter perdido essa. Dou um pontinho para ele quando entrevistou, ano passado, a autora do livro "O professor refém" e ela começou a falar aquelas baboseiras de sempre, eu senti que ele percebeu a enrolação e não deu muito papo pra ela. Aliás, esse livro é citado na comunidade dos "Professores sofredores", no Orkut. É óbvio que elas adoraram.
Ananda disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Ananda disse…
Ótima análise! O programa de ontem foi fraquíssimo mesmo... Uma chatice ouvir as histórias do Jô de quando ele era estudante, suas comparações e perguntas bestas... O apresentador deveria ter lido no mínimo o PAC da educação, que inclusive está disponível no site do MEC. Ali há mil propostas interessantes, que devem ter seu cumprimento cobrado pela sociedade e renderiam "muito pano pra manga".
Giulia disse…
Rope, esse ministro tem um jeitinho de Chalita, aquela falinha mansa...
Se o cara não mostra convicção daquilo que se propõe a fazer, dá pra confiar? Quanto ao entrevistador, não pode colocar suas idéias na frente. O Jô costuma fazer isso. Parece que vai entrevistar alguém pra confirmar aquilo que ele mesmo pensa. Realmente, essa entrevista foi um pesadelo num horário em que eu poderia ter aproveitado mais umas horas de sono. O pior é que depois não consegui dormir até botar tudo no papel, ops, no blog.
Ricardo Rayol disse…
Há muito tempo que o Jô é um bosta. Quanto ao ministro não era de se surpreender vindo do governo que vem. Você foi magistral. Belissima aula de cidadania.
Anônimo disse…
Gente, vocês não percebem que não é este governo, são todos os governos. Todos, todos, morrem de medo de professores. Vocês não assistiram aí ao quebra pau da corporação, atingiram 19 policiais que saíram feridos...tentem pensar em mais quem pode atingir a polícia e sair ileso, só mesmo professor. Já pensaram se fossem moradores da favela que tivessem atingido um policial?
Giulia disse…
Pois é, faz anos que a gente tá tentando entender esse fenômeno do professor intocável, mas acho mesmo que só Freud explica (não é piadinha, não...)!
Anônimo disse…
Giulia, particularmente, não aguento mais o estilo do programa do Jô. Sei que ele é uma pessoa inteligente, talentosa e tudo o mais, mas saturei e quando ele começou a manter um rei interno maior do que a barriga, aí desisti de vez e isso tem uns 4 anos. Tem gente muito melhor e que sabem fazer entrevistas. Tudo bem que o foco é outro, mas meu preferido é o João Dória Júnior. Camarada realmente inteligente. Sobre a entrevista em si, como não a assisti não tenho nem o que falar. O seu post, mais esta vez, está excelente. Concordo com o Rayol, uma aula de cidadania. Boa semana para você.
Walter Carrilho disse…
Até onde percebo, o Jô só entrevista a si mesmo. O convidado é detalhe...