Fiquei feliz!


Cheguei de viagem e já fiquei estressada: dá para acreditar que uma criança promovida para a 5ª Série foi transferida para uma escola distante e ficou sem vaga no bairro?... A mãe bateu em todas as portas: Secretaria da Educação, COGSP, Diretoria de Ensino, Conselho Tutelar, no entanto a menina não teve sequer um dia de aula este ano!!!
Agora o assunto está com a promotoria e as “dondocas” que lotam esses órgãos públicos vão ter que se explicar. Negar vaga para uma criança na escola é crime – e quem se omitiu é cúmplice!

Bem, como esse assunto já está praticamente solucionado, vamos para outro bem mais prazeroso: sabem meu livro O Estuprador, aquele texto “maldito” que somente os tarados lêem, pensando que se trata de pornografia?... Leiam em capítulos aqui

A história trata de um aluno pobre discriminado na escola e é baseada num fato verídico do qual infelizmente não consegui saber o desfecho. Por isso inventei um “final feliz” para essa história pra lá de triste.

Mas vejam que surpresa! Tenho recebido mensagens de João Luiz, um cientista brasileiro radicado nos Estados Unidos, que viveu em condições parecidas com aquelas do meu personagem. Sugeri ao João que escrevesse um livro contando sua história, pois é muita felicidade saber que um brasileiro conseguiu superar tantas dificuldades na escola e ainda ser reconhecido no Exterior. Aí vão alguns trechos das mensagens desse nosso novo amigo:

Giulia, espero que você possa ler este e-mail e saber o quão longe você conseguiu atingir com seu conto que acabo de ler, não digo isso pela distância, e sim por ter me atingido na alma. Confesso que o titulo não me agradou no início, mas a curiosidade me levou a iniciar a leitura. A maneira como você escreveu esse conto me fez sentir na pele o desespero do garoto, que muitas vezes me fez recordar de mim mesmo e da minha infância. Felizmente minha história acabou bem, pois houve pessoas que me ajudaram. Às vezes me sentia como uma semente tentando germinar no asfalto, e acredito que essa era também a maneira como as pessoas me viam quando olhavam para mim.

Sei que não sou o único garoto que nasceu na favela e deu a volta por cima, porém acho que temos o dever de mostrar às crianças que vêm depois de nós que existe uma chance de mudarmos nossas vidas. Sempre tive a intenção de escrever um livro, mas nunca sobre minha vida, ao contrário do que as pessoas próximas de mim achavam. Eu queria escrever outras coisas, mesmo porque nunca achei que minha história tinha algo de diferente de milhares de crianças que nascem todos os dias em lugares muito pobres do Brasil. Meus amigos e familiares pensam diferente, acham que minha história merece ser contada e hoje, ao ler seu conto, eu realmente decidi que vou escrever. Quem sabe um dia eu consiga inspirar alguém, como você fez comigo.

Um pouco de mim: minha mãe foi criada em fazenda, onde meus avós eram empregados como lavradores. Meu pai foi criado pela mãe até os 9 anos, pela avó até os 13 e depois pelo mundo, quando se tornou completamente órfão. Eu nasci num lugar que meu pais chamavam de barracão na periferia de São Paulo, filho mais novo de 9 irmãos. Minha mãe esfregou chão e foi empregada doméstica, meu pai foi ajudante e motorista de caminhão a vida toda e só o via 2 vezes por mês...

Cresci assim, pobre, tão pobre que nem sabia o quanto pobre era, me lembro de roupas de segunda mão, de apenas café preto de manhã pra ir pra escola, do humilhante atestado de pobreza que nos faziam assinar em classe pra poder receber os cadernos e os livros do governo. Me lembro do chinelo de dedos com a correia emendada e do dia de Cosme e Damião, quando ganhávamos um doce e uma bola de plástico do centro espírita...
Deus, lembro de tudo isso ainda... tá gravado em minha alma...
O pai era um homem bom, trabalhador, acostumado à vida dura e suada na missão de alimentar a família. Ajudou a carregar e descarregar caminhões, carpiu e trabalhou na roça de café, cana e algodão, mas foi dirigindo pesados caminhões pelo Brasil que conseguiu nos sustentar. Imagino como deve ter sido trabalhar de sol a sol, pra sustentar a família que pouco, muito pouco tempo teve tempo pra desfrutar...
Minha mãe saiu do interior de São Paulo, sozinha com apenas 15 anos de idade, pra vir trabalhar em casas de família na capital. Trabalhou muito pra mandar ajuda aos pais, que eram colonos na fazenda de onde tinha saído. Trabalhou em várias casas e aos 17 anos conheceu meu pai, se casaram e voltaram pra fazenda, onde tinham trabalho de lavradores nas plantações de café. Após alguns anos retornaram a São Paulo, onde nasceram 4 dos 9 filhos.
Tento não me ofender quando ouço alguem dizer que tive sorte, ou quando alguém se antecipa em me julgar como se tivesse nascido numa família rica, mas infelizmente no Brasil é assim, te julgam apenas pelas aparências. Muitas vezes cheguei à escola atrasado, pois tinha que aguardar minha irmã chegar da educação física, pra eu poder pegar o tênis com ela pra eu poder ir à escola, pois dividíamos o mesmo calçado.
Às vezes, quando sou convidado a ministrar uma palestra ou seminário, aguardo as pessoas se acomodarem e fico imaginando se entre eles não teria alguém com a mesma origem que a minha... Nunca subestimo ninguém...
Tenho muitas lembranças das escolas públicas, pobres e mal assistidas de São Paulo, mais precisamente da Cohab de Carapicuiba, onde aprendi a ter amor pelos estudos e onde fui espancado e torturado pela polícia por mais de 5 horas junto com outros colegas de classe, tendo no final da tortura que implorar pela vida, enquanto mantinham uma arma em minha cabeça, com os policiais se divertindo num jogo sádico chamado roleta russa. Nosso único crime foi gostar demais daquela escolinha e frequentá-la até mesmo nos fins de semana, que era nossa única opção de esporte e lazer.
É uma história longa, muito triste às vezes, mas muito bonita também. Não me vejo como herói nem nada, não acho que sou melhor do que ninguém nem me sinto na condição de dar conselhos. O que eu mais gosto na minha história é saber que no lugar de onde vim existem mais "Joãos" como eu, até com mais potencial, que precisam apenas de um empurrãozinho, de uma chance...

Comentários

Anônimo disse…
Nossa! Acho que meu saco é muito pequeno pra ler tudo isso! Que porcaria de matéria.
Giulia disse…
Cansou? Pobrezinho, é dos cansadinhos...
Ricardo Rayol disse…
Giulia, benvinda de volta, ou eu estou atrasadissimo com as visitas. Nada mais maneiro do que ler a respeito sobre quem vence. E, na minha modesta opiniã, se um cara tem saco pequeno deve ter o bilau menor ainda, é lógico?