Neste país sem memória nem interesse em vencer o apartheid educacional que impera desde o "descobrimento", a ocupação de mais de 200 escolas por seus alunos não foi compreendida pela população em geral e muito menos pelos pais e alunos que se posicionaram contra.
A população em geral não valoriza a educação pública, prefere pagar duas escolas: uma particular, para seus próprios filhos, e a outra... bem, a outra é para os filhos "dos outros".
Os pais e alunos da rede estadual de São Paulo que se posicionaram contra as ocupações, não se deram conta de que o governo iria fechar "apenas" 94 unidades, mas que as Escolas de Luta somaram mais de 200. Por que alunos de escolas que não seriam fechadas teriam "invadido" e ocupado seus colégios?...
Esta reflexão não pode ser feita sem a discussão de algumas ideias e muito menos sem o conhecimento de certos fatos. No Brasil inteiro, os pais "que podem", pagam escola particular para os filhos - mesmo que essa escola seja uma aberração educacional: inadequada, retrógrada, preconceituosa, incompetente ou, até mesmo, funcionando de forma ilegal. Esses pais "que podem", costumam escolher as escolas por uma indicação qualquer, ou apenas porque a mensalidade "cabe no seu bolso". Quando esses pais caem em si, denunciam fatos como os que publicamos aqui, aqui e aqui.
Enfim, a população que paga escola particular para os filhos entende que a pública é "de graça" e que por isso não presta... Já a maioria dos pais e alunos da rede pública não tem noção clara de pertencimento. A Constituição Federal diz que "a educação visa ao pleno desenvolvimento da pessoa". Ora, quem será essa pessoa, se não o aluno?.. Pais e alunos, porém, estão tão acostumados a ouvirem o diretor estufar o peito e dizer "MINHA escola", que têm dificuldade em criar vínculos com ela. Também entendem que não tiveram opção "melhor", e tendem a desvalorizar o que de fato lhes pertence.
Esse círculo vicioso impede que a rede pública ofereça aos seus alunos o que a Constituição também determina: "igualdade de condições" para todos os alunos. Em lugar de uma educação de qualidade para todos, o governo oferece programas de assistência apenas material, que nunca irão compensar os prejuízos de frequentar uma escola que não alfabetiza e - pior - não estimula a pensar.
Até hoje, essa tremenda falha educacional tem prejudicado gerações e mais gerações de alunos, sem provocar comoção geral. Até que ocorreu algo totalmente inédito, que foi essa iniciativa de os estudantes paulistas ocuparem suas escolas, tomando posse do que já era deles. Tanto os alunos dos colégios que seriam fechados, quanto os que seriam "apenas" transferidos de escola, se sentiram ultrajados pela decretação de uma reforma atropelada e confusa.
Em poucos dias, mais de 200 colégios da capital e do interior paulista foram ocupados por um número pequeno de alunos, porém muito determinados e motivados pelo sentimento de pertencer à escola, ao bairro, a uma comunidade que não queriam abandonar.
Em seu delirante mas inconfesso autoritarismo, "tio" Geraldo não se conformou com essa atitude dos alunos, que julgou mera provocação ou manipulação de adolescentes por parte dos sindicatos ou entidades estudantis, ou seja, manobra da oposição. Ele tentou então recuperar os colégios cercando-os de pelotões de polícia. Não deu certo, então procurou as vias legais, mas a Justiça lhe esclareceu que as escolas estavam sendo ocupadas pelos respectivos donos... Tentou então embromar os alunos, prometendo a "suspensão" da reforma, o que não colou. Ele mobilizou então os diretores para aliciarem os pais e alunos contrários às ocupações, incitando-os a invadirem, vandalizarem as escolas e agredirem os ocupantes, a fim de amedrontá-los e obrigá-los a sair, tudo isso com a colaboração e orientação da polícia. Os estudantes resistiram bravamente durante as invasões, sem se entregarem.
Essa última manobra do Geraldo foi a mais sórdida e certamente mais eficaz, pois numa guerra declarada, como essa da Secretaria, nada funciona melhor do que colocar as vítimas umas contra as outras. Além de terem sofrido agressões físicas e verbais, os alunos foram até acusados de terem sido os próprios vândalos, de terem roubado objetos, documentos etc. durante as invasões, outra estratégia na qual o governo do estado de São Paulo é mestre. Tudo isso provocou reações diferentes nos estudantes das escolas de luta: uns resolveram desmanchar as ocupações, outros continuam nas escolas até conseguirem um posicionamento definitivo do governo sobre a revogação da reforma, mas todos declaram com firmeza que a luta continua.
Nas escolas já desocupadas, o desafio é agora restabelecer o relacionamento entre todos os membros da comunidade escolar, destruído pela sórdida manobra de atirar uns contra os outros, que criou conflitos e desconfianças. Em compensação, os colégios foram entregues mais limpos e arrumados do que antes da ocupação, houve reparo de danos, trocas de canos, fios e lâmpadas. Os alunos tomaram o cuidado de documentar tudo, fotografaram e filmaram as condições em que encontraram as escolas, as atividades que desenvolveram durante o período, o vandalismo e as agressões que sofreram por parte de "opositores" que nem sempre puderam identificar, mas que na maioria dos casos foram policiais, pais, alunos e diretores. Nos colégios ainda ocupados, provoca-se o governo com questionamentos que já extrapolam a mera reorganização da rede, mas abordam aspectos da cidadania, do currículo e da gestão escolar.
A grande riqueza desse extraordinário movimento estudantil tem sido o descobrimento da escola como espaço de aprendizado, convivência e integração, em lugar da desmotivação que muitas vezes levava os alunos a evadirem ou a continuarem os estudos por mera obrigação.
Certamente, essas escolas nunca mais serão as mesmas, e as discussões travadas a partir deste histórico novembro irão inundar a rede paulista durante todo o próximo ano letivo. As escolas de luta da rede paulista formaram lideranças, estimularam o protagonismo, a solidariedade, a independência e a coragem dos alunos. Elas se fecharam para a volta dos burocratas, das aulas chatas, das aulas vagas, do autoritarismo dos diretores e da secretaria da educação, mas se abriram para voluntários que ofereceram todo tipo de atividades educacionais e artísticas, debates, apoio jurídico, pedagógico e psicológico. A vida penetrou nesses prédios sombrios e mal cuidados, como nunca havia ocorrido antes, e isso reforçou a noção de pertencimento dos alunos à escola.
Se as escolas estaduais "perderam" alunos, isso se deve a uma política educacional que durante décadas tratou os estudantes com descaso, ofereceu aulas medíocres e aulas vagas, deixou diretores e professores à vontade para expulsar alunos a rodo. Então na verdade essas escolas foram esvaziadas, e onde existe superlotação de classes, isso é devido à perversidade do sistema, pois tudo se resolveria tranquilamente com transporte escolar, uma solução inclusive barata. Ficou muito famosa a expressão "escola de rodinhas", criada há 10 anos por uma Secretária Adjunta da Educação, que mereceu o Troféu Anta do Ano da Educação em 2006... A retrospectiva histórica é muito importante para entender que essa "reorganização" do Geraldo não passa de um remake da mesma reforma do governador Covas que já ilustramos aqui, aqui e aqui. Os resultados dessa reforma foram devastadores: logo em 1995 foram fechadas 150 escolas, mas o Covas foi mais "esperto" que o Geraldo, não informou que haveria fechamentos!... Isso deixou a secretaria à vontade para virar toda a rede de perna pro ar, mas depois a população ficou muito revoltada e obrigou a mudar tudo de novo.
As escolas que mais "perdem" alunos costumam ser aquelas localizadas em bairros de classe média, onde o lobby da rede particular atua junto às Diretorias de Ensino para enfraquecer as escolas públicas e assim garantir o maior número possível de clientes. Pois o objetivo inconfessado e inconfessável do "tio" Geraldo é o de municipalizar o ensino fundamental e privatizar o médio. Pronto: aí não vai ter mais escolas pra administrar, nem precisa de rodinhas... rs
Toda essa discussão é importante, pois a rede de ensino paulista é a maior do país, e o movimento Escolas de Luta já começou a repercutir e a receber apoio de vários outros estados e até de fora do país. Além disso, em Goiás, onde há um claro projeto de privatização e militarização das escolas, alguns colégios já foram ocupados por alunos, nos mesmos moldes paulistas. Em todo o Brasil são feitos artigos, vídeos e documentários sobre este movimento que está fazendo história. A luta continua!
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