A escola esquizofrênica

A Editora Humana convidou novamente o EducaFórum a colaborar para o seu anuário. Desta vez, o interesse da editora se voltou para a Cartilha sobre os Direitos dos Alunos. A Cartilha é uma “criação coletiva” realizada em 2002 e contou com a colaboração de todos os amigos relacionados abaixo. Para comentar a Cartilha escrevi o artigo A escola esquizofrênica, que acabou de ser publicado no livro Educação 2008.

Atenção, novo! A pedido de alguns internautas que tiveram dificuldade em localizar os fatos relatados no artigo, introduzi os links correspondentes.

A idéia de escrever a Cartilha sobre os Direitos dos Alunos partiu de frases e expressões negativas ouvidas por pais e alunos da boca de professores ou profissionais do ensino. Algumas, os próprios membros do EducaFórum “colecionaram” durante suas antigas reuniões mensais na Câmara Municipal de São Paulo. Outras foram retiradas de e-mails recebidos do Brasil inteiro. Hoje, o EducaFórum é um espaço virtual que recebe mensagens de todos os Estados do País através de seu blog http://educaforum.blogspot.com/

Ao ser criada, a Cartilha visava atingir dois objetivos: sensibilizar a classe docente e trocar em miúdos o Estatuto da Criança e do Adolescente, ainda hoje o “grande desconhecido” dentro das escolas – em toda instituição existe pelo menos um exemplar do ECA para consulta, mas a maioria dos profissionais da educação nunca o leu na íntegra.

Infelizmente, nada temos a comemorar! Nossa Cartilha não perdeu a atualidade: ainda hoje chovem denúncias que mostram a insensibilidade e a ignorância de muitos profissionais da educação e do próprio poder público com respeito ao aluno.

E o problema não se resume apenas a situações discriminatórias ou constrangedoras. Trata-se, inclusive, de práticas extremamente graves que costumam culminar na evasão ou na expulsão de alunos, através da instauração de tribunais de exceção dentro dos próprios Conselhos de Escola.

No Estado de São Paulo, que possui a maior rede pública do País, a situação é grave e a Secretaria Estadual da Educação nunca condenou oficialmente a prática da expulsão de alunos, camuflada pela expressão “transferência compulsória para outra unidade escolar”. Neste aspecto a Cartilha fracassou redondamente, pois, imediatamente após sua criação, foi encaminhada à Ouvidoria e à Secretaria da Educação, que até hoje não admitem a ilegalidade da expulsão/transferência compulsória de alunos via Conselho de Escola.

Eis a pergunta que não quer calar: o que as autoridades da educação pretendem ao transferirem compulsoriamente um aluno para outra escola? Elas acreditam mesmo que ele vai “se regenerar”? Não percebem que ele vai ser ainda mais discriminado e estigmatizado em outra instituição? Que vai ficar ressentido e ainda mais rebelde? Finalmente, as autoridades não percebem que estão apenas transferindo um problema para outros profissionais a algumas quadras de distância, dentro do mesmo bairro? E quem garante que esses outros profissionais vão saber lidar melhor com o aluno expulso?

Para ilustrar a utilidade da Cartilha, escolhemos algumas denúncias recentes relatadas no blog do EducaFórum, ocorridas em cidades e redes de ensino diferentes, inclusive a particular. Todas elas mostram a violação de direitos básicos de alunos dentro da escola.

A falta de respeito se estende também aos pais, quando “teimam” em ser recebidos por diretores de escola ou coordenadores ausentes e relapsos. Ainda hoje é comum que as mães sejam questionadas se não têm coisa melhor para fazer, como lavar roupas ou panelas...

Um exemplo muito interessante é o depoimento que recebemos em junho de 2007 da mãe de dois alunos disléxicos. Entre inúmeras desventuras que essa mãe vivenciou na escola dos filhos, ela chegou a ser chamada de “criança” aos gritos por uma coordenadora pedagógica. Independentemente do mérito da questão, pode-se imaginar o conceito de criança que vai na mente dessa coordenadora...

Por outro lado, o depoimento dessa mesma mãe mostra que a solução para o problema dos filhos foi encontrada dentro da própria escola onde, ao lado de profissionais incompetentes e ignorantes, alguns professores sensíveis e bem intencionados se dispuseram a buscar informações e a desenvolver práticas eficientes.

Antes disso, porém, foi necessário dobrar a teimosia e a arrogância da direção da escola, que só aceitou os laudos comprobatórios da dislexia dos alunos, emitidos pela ABD – Associação Brasileira de Dislexia, depois que a mãe foi procurar o Conselho Tutelar. Mesmo assim, foi necessário que o próprio Conselho Tutelar os entregasse à direção! Leia nosso post publicado na época do ocorrido http://educaforum.blogspot.com/2007/07/dislexia-ainda-grande-desconhecida.html

Este é um raro exemplo de sucesso, em que a lucidez e a determinação de uma mãe acabaram com a discriminação dos filhos dentro da escola. Infelizmente, a maioria dos pais da rede pública não tem a capacidade de articulação e a coragem dessa mãe, que enfrentou muitos obstáculos e humilhações para atingir seu objetivo. A maioria das escolas públicas brasileiras apresenta esse quadro “esquizóide”: uma mistura aleatória de maus e bons profissionais, aliada a uma direção incompetente ou ausente.

Em maio de 2007, numa escola particular de São Paulo, ocorreu um episódio que não teria qualquer repercussão se uma mãe não nos procurasse para pedir orientação. O problema relatado envolvia apenas indiretamente seu filho de 5 anos, aluno de 1ª Série. Uma professora da 2ª Série chamou o menino para outra classe e lhe fez diversas perguntas que uma aluna dela não sabia responder. Depois lhe deu um beijo e o dispensou. Quando ia saindo da sala, o garotinho escutou o choro da aluna e os gritos da professora: “Quantas vezes eu vou ter que te ensinar isso?” A mãe do aluno poderia ter deixado o assunto morrer, mas ficou preocupada com a reação do filho, que lhe contou o episódio como se fosse a coisa mais natural do mundo e até comentou que as perguntas eram “fáceis demais”.

Os internautas que leram a história no blog deram depoimentos muito interessantes que ajudaram essa mãe a abordar o assunto com a diretora da escola, deixando claro que não achava justo que seu filho tivesse sido usado para uma sessão de “humilhação pública”. Essa foi a expressão que ela usou e que se aplica perfeitamente ao caso. O problema, porém, extrapola o mero constrangimento de uma aluna. Trata-se de utilizar a humilhação como “recurso pedagógico”! Um minuto de silêncio para reflexão... Leia toda a história e os comentários dos leitores aqui http://educaforum.blogspot.com/2007/06/lio-de-casa.html

Outro caso interessante ocorreu, também em maio, em uma escola da rede estadual em Belo Horizonte. Um aluno adolescente foi acusado injustamente de ter agredido uma professora, saiu algemado da escola e ficou doze dias numa unidade da Febem local até que a sentença do juiz, baseada em relatórios técnicos elaborados por peritos, considerou o aluno inocente e verificou que ele estava sofrendo perseguição sistemática por parte da professora. O aluno passou a fazer tratamento para se recuperar do trauma, mas a professora não perdeu a pose e deixou claro que ela sairia da escola se o aluno voltasse. Esse é um caso típico da arrogância de certos profissionais que se sentem à vontade para discriminar e perseguir alunos, na certeza da impunidade. Leia sobre o assunto aqui http://educaforum.blogspot.com/2007/06/impunidade.html

O primeiro dia de aula em uma das escolas mais tradicionais da rede estadual de São Paulo, a EE Brasílio Machado, foi suspenso no ano de 2007. A direção da escola chamou a polícia para impedir a entrada de estudantes sem uniforme. Eles foram ameaçados com spray de pimenta e retirados violentamente de dentro da escola por “educadores” que os puseram para fora e trancaram o portão, suspendendo as aulas. Nem mesmo durante o governo militar as escolas exigiam que os alunos estivessem uniformizados no primeiro dia de aula, sempre havia a tolerância de alguns dias. E isto acontece em 2007, em plena “democracia”, numa rede pública cuja legislação PROÍBE “instituir o uso obrigatório de uniforme” (Lei nº 3.913, de 14/11/83). Mais um paradoxo que mostra o caráter “esquizóide” de uma instituição que não se envergonha de defender a ilegalidade, impedindo aos alunos o livre acesso e a permanência na escola! O caso "EE Brasílio Machado" está lincado aqui http://educaforum.blogspot.com/2007/02/que-1-dia-de-aula.html

O último exemplo mostra uma supervisora de ensino da Grande São Paulo apoiando a negação da rematrícula de um aluno! Em dezembro de 2006, a mãe do estudante cansou de suplicar pela rematrícula do filho, negada pela direção da escola. O EducaFórum a orientou para procurar a Diretoria de Ensino, mas, para variar, nem a supervisora da escola nem o dirigente estavam no local. A supervisora que a atendeu não estava a par do assunto e ligou para a escola, a fim de se inteirar. A diretora afirmou que não permitiria a rematrícula, pois não admitia aquele aluno dentro da instituição. Então a supervisora sugeriu à diretora, na frente da mãe do aluno, que convocasse o Conselho de Escola para deliberar a transferência, ou seja, a expulsão do aluno...

A mãe disse que havia nos procurado e que estávamos em contato com a Ouvidoria da Educação. A supervisora deu um sorrisinho e afirmou que “não iria dar em nada”.

Realmente, por parte da Ouvidoria não deu em nada! Ficou bem claro que o ouvidor não se indispõe com a direção de nenhuma escola. Entretanto, essa história teve um final feliz graças ao próprio Dirigente de Ensino que, ao saber do assunto, chamou pessoalmente a mãe para uma reunião, pediu desculpas e providenciou imediatamente a rematrícula do aluno. Leia a história no link

Todos os exemplos dados mostram que a maioria das escolas brasileiras não existe em função do aluno, como “reza” a nossa Cartilha. As poucas boas escolas, finalmente reveladas pela Prova Brasil e pelo Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), mostram os elementos positivos em comum: compromisso com o estudante, direção segura e presente, projeto pedagógico coerente e professores competentes.

Na maioria das escolas públicas que apresentam índices negativos, a direção é incompetente, relapsa ou ausente, falta projeto pedagógico ou então ele é ignorado por certos professores que se acham no direito de ensinar e tratar os alunos “do seu jeito”. Nessas escolas, os melhores profissionais têm dificuldade em desenvolver seu trabalho, pois acabam sendo boicotados por colegas e diretores menos compromissados.

A educação brasileira precisa de urgente tratamento contra essa “esquizofrenia” que permite a presença de profissionais de níveis tão disparatados numa mesma escola. Para atingir um mínimo de qualidade, a instituição precisa de um corpo docente coeso e de uma proposta pedagógica bem estruturada, fatores que dependem principalmente de uma direção segura e competente.

A clareza dessa visão, confirmada pelo Ideb das melhores escolas do País, renova a esperança de que venham a ser tomadas medidas em todos os níveis governamentais, a fim de garantir que os bons exemplos possam ser aproveitados e frutificar em todo Brasil.

O momento em que nossa Cartilha sobre os Direitos dos Alunos se tornar óbvia ou obsoleta poderá ser o marco para medir o progresso do sistema educacional como um todo.


CARTILHA SOBRE OS DIREITOS DOS ALUNOS
(Texto resumido)

O ALUNO É O CENTRO DA ESCOLA

Ela existe em função do aluno

O aluno precisa da escola
para aprender
para se desenvolver
para fazer amigos
para conhecer o mundo
para entender a vida
para projetar o seu futuro
para contribuir com o seu país.

Por isso, ele tem o direito de
permanecer na escola
ser respeitado para aprender a respeitar
ter um ensino de qualidade
esclarecer suas dúvidas
receber orientação de seus mestres
dizer o que pensa sem medo de não ser aceito
dizer o que gosta sem medo de ser discriminado.

O aluno é um ser humano em formação.
Ele precisa aprender a ter responsabilidade.

Todos os alunos são diferentes.
Mas eles têm direitos iguais.

Nem todos têm família estruturada.
Mas todos merecem respeito.

PENSE NO ALUNO
COMO SE FOSSE SEU FILHO


Coordenação da Cartilha

Giulia Pierro – Escritora e coordenadora do EducaFórum. Mais informações, visite http://educaforum.blogspot.com/ e http://caracol.imaginario.com/autografos/giuliapierro.

Colaboradores da Cartilha

Caroline Miles – Coordenadora do site Pais Online. Para mais informações visite http://paisonline.homestead.com/ ou mande um e-mail para paisonline@hotmail.com

Cida Gomes - Coordenadora do Grupo de Trabalho pelo Fechamento da Febem-SP. Para mais informações visite http://fecharfebem.cjb.net/ ou mande um e-mail para mpideamos@hotmail.com

Cremilda Estella Teixeira - Coordenadora do blog Cremilda Dentro da Escola. Para mais informações visite http://cremilda.blig.ig.com.br/ ou mande um e-mail para cremildaestella@hotmail.com

Mauro Alves da Silva - Coordenador do Movimento Comunidade de Olho na Escola Pública. Para mais informações visite www.geocities.com/coepdeolho ou mande um e-mail para gremiod@yahoo.com

Vera Vaz - Autora do livro A escola do saber. Para mais informações visite http://www.escoladosaber.xpg.com.br/ ou mande um e-mail para veravaz@uol.com.br

Comentários

Anônimo disse…
Essa frase dita por vc é corretíssima:"...a direção é incompetente, relapsa ou ausente, falta projeto pedagógico ou então ele é ignorado por certos professores que se acham no direito de ensinar e tratar os alunos “do seu jeito”. Nessas escolas, os melhores profissionais têm dificuldade em desenvolver seu trabalho, pois acabam sendo boicotados por colegas e diretores".

É exatamente isso mesmo que acontece, por isso nós (professores) ficamos a mercê desses maus profissionais, a pressão é grande. Poderíamos sim, denunciá-los..., mas pra quem??
Pra secretaria? Pro Prefeito? Pra.....?????
Seria tudo inútil, quem se atreve a fazer isso é massacrado, seja os pais ou professores. NÃO PODEMOS IR CONTRA O CORPORATIVISMO, SERIA O MESMO QUE NEGAR A PÁTRIA...Se é que vcs me entendem!
Giulia disse…
Te entendo, Anônimo! Você tem toda razão: denunciar pra secretaria e pro prefeito não dá em nada mesmo, porque a corporação é muito forte e ela está lá dentro mesmo. Você acha que os assessores educacionais são o quê?... Professores - e daqueles ligados ao sindicato e aos partidos!
O caminho de vocês precisa ser outro: os bons professores precisam se unir e ir denunciar os maus, sabe para quem? Para o próprio SINDICATO! Ora bolas, vocês BONS professores não se aborrecem de pagar um sindicato que só serve para promover greve??? Um sindicato que promove os MAUS professores e que só serve de cabo eleitoral para maus políticos??? Vocês aceitam isso? É nas reuniões do sindicato que vocês têm que comparecer em bloco, exigindo o fim do MAU CORPORATIVISMO. Dá trabalho? Dá! Precisa de coragem? Precisa! Mas como se muda um país sem trabalho e sem coragem???
Outra coisa: vocês precisam parar de entrarem MUDOS e sairem CALADOS das reuniões de Conselho de Escola! Precisam apoiar os pais que TÊM CORAGEM de denunciar. Só os pais tem que colocar a cara para bater? Então veja, caro Anônimo: comece a fazer a sua parte!